terça-feira, 10 de agosto de 2021

Não se iluda, o “clube-empresa” representa o fim do SEU clube.





Foi sancionada ontem a lei que permite que os clubes de futebol se tornem empresas, ou seja, que as hoje associações sem fim lucrativos se tornem uma sociedade anônima do futebol (SAF). Em resumo, significa que os clubes de futebol, hoje administrados por um Presidente e fiscalizados por um Conselho Deliberativo eleito por seus torcedores passariam para o controle de uma sociedade anônima de acionistas.

Mas no que isso realmente implica? 

Nem vou entrar em detalhes muito específicos da lei, vou me ater apenas nas questões mais óbvias. 

Primeiramente, é bom ressaltar que acionistas não são eleitos, ou seja, na prática, o torcedor do clube perderá sua representatividade, e não terá mais nenhum tipo de participação direta nas tomadas de decisões. Lembro ainda que os acionistas sequer necessitam ter qualquer ligação ou serem torcedores do clube. Nem vou entrar aqui no mérito dos vetos do governo na lei original que impedem que os torcedores tenham conhecimento dos nomes dos integrantes dos fundos de investimento atuantes na sociedade e retiram a obrigatoriedade de divulgação de quem são os acionistas da SAF. 

Torcedor, é possível que você, além de perder sua representatividade em todas as tomadas de decisão, sequer saiba quem são os donos (e o termo correto é exatamente esse) do clube. 

Hoje em dia a razão principal da existência dos clubes é o futebol profissional, isso é óbvio. Entretanto, os clubes estão intimamente ligados aos seus torcedores, e, por isso, se envolvem em diversas outras questões como a formação de atletas, fomento ao esporte amador e políticas de inclusão social. Não precisa ser um grande gênio para perceber que um clube-empresa tem um único objetivo, que é a exploração econômica da marca, e que na ordem de prioridades, isso vem inclusive antes dos resultados de campo do futebol. Basicamente os acionistas querem lucro e retorno do seu investimento, independentemente de qualquer outra coisa.

É tão óbvio que é até desnecessário alertar para o fato de que o torcedor com menos condições financeiras, que nas últimas décadas vem sendo cada vez mais afastado dos estádio, perderá de vez qualquer chance de assistir ao seu time do coração e será definitivamente excluído da vida do clube. 

Meu avô, mesmo morando no interior e não tendo grandes condições financeiras, na década de 60, fez questão de ajudar de alguma forma na construção do estádio Beira-Rio. A entrega do controle do clube (e do estádio) para acionistas seria um tapa na cara do meu avô e de todos os milhões de torcedores que ao longo da história do clube se sacrificaram, choraram e vibraram junto com o SEU TIME

A lei que foi promulgada é a Lei 14.193, é fácil acessá-la na internet. Se acha que estou exagerando, sugiro que leia você mesmo. A lei permite que o controle do clube seja passado inteiramente para a SAF, incluindo todo o patrimônio, estádio, símbolo, cores, hino, departamento de futebol… realmente tudo. 

A Lei cria, em um primeiro momento, a obrigatoriedade da emissão do que chamam de ações ordinárias classe A, para subscrição exclusivamente pelo clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, e que correspondem ao mínimo de 10% das ações totais. E, no §4° do Art. 2° da Lei, há a seguinte redação: 

§ 4º Além de outras matérias previstas no estatuto da Sociedade Anônima do Futebol, depende da concordância do titular das ações ordinárias da classe A, independentemente do percentual da participação no capital votante ou social, a deliberação, em qualquer órgão societário, sobre as seguintes matérias: 
I - alteração da denominação; 
II - modificação dos signos identificativos da equipe de futebol profissional, incluídos símbolo, brasão, marca, alcunha, hino e cores; e 
III - mudança da sede para outro Município. 

Certamente vão vender esse parágrafo como uma espécie de segurança ao torcedor de que não trocarão os símbolos, cores e até a cidade do clube sem o seu consentimento, mas não se iluda, basta descer um pouco mais no texto para chegarmos ao “ovo da serpente”. 

§ 6º  Depende de aprovação prévia do clube ou pessoa jurídica original, que é titular de ações ordinárias da classe A, qualquer alteração no estatuto da Sociedade Anônima do Futebol para modificar, restringir ou subtrair os direitos conferidos por essa classe de ações, ou para extinguir a ação ordinária da classe A

Qualquer pessoa que acompanha minimamente o futebol sabe que os times possuem altos e baixos, todo torcedor sabe disso. Invariavelmente, haverá momentos de crises técnicas e financeiras no clube, seja ele qual for. Some um momento de forte crise no futebol, com a forte passionalidade do torcedor e com alguns acionistas majoritários com fortes influências econômicas junto ao Conselho Deliberativo e à imprensa, e estão criadas as condições ideais para a manobra política para exclusão definitiva das ações do tipo classe A e, consequentemente, para a exclusão definitiva da “pessoa jurídica original” da vida do clube. 

Depois disso, qualquer ação relacionada ao clube terá como único critério o retorno financeiro. Poderão mudar o nome do estádio do seu clube para o nome de alguma figura política, poderão mudar as cores do seu clube, poderão vender o estádio para a especulação imobiliária e construir outro estádio em um local “menos nobre” ou até em outra cidade. 

Na prática, transformar o clube de futebol em empresa significa basicamente pegar uma marca forte, forjada pelo suor, dedicação, sofrimento e emoção de milhões de pessoas ao longo de várias gerações e entregar de presente para acionistas obterem lucro com ela. Será, definitivamente, o fim do SEU clube.

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