sexta-feira, 5 de julho de 2019

Existe uma fórmula para a felicidade?


À primeira vista, quando escutamos a pergunta “existe uma fórmula para a felicidade?”, obviamente imaginamos que a resposta seja “não”. Como uma coisa tão complexa poderia ter uma fórmula definida?

De qualquer forma, nada que conhecemos é mais complexo que o Universo em si, suas partículas, ondas, energias e movimentos, mas, mesmo assim, ao menos a pequena parte dele que conseguimos decifrar se comporta através de equações e constantes matemáticas perfeitamente definidas. Dessa forma, me parece que a simples complexidade de uma questão não pode servir de justificativa para que se admita que não existam soluções precisas.

De acordo com o escritor Andrew Tomas, “O homem só é civilizado quando se lembra do dia de ontem e sonha com o dia de amanhã. O primata começou a deixar o reino animal quando desenvolveu um cérebro superior e uma postura ereta. Tornou-se um verdadeiro homem quando se aventurou nos domínios do pensamento abstrato...”.

Desde essa “aventura” já se passaram milhares de anos, com diversas civilizações altamente avançadas e, ao que me parece, a razão final de vida dos seres humanos ao longo de todo esse tempo é sempre a felicidade. Então, se existir mesmo uma fórmula para a felicidade, alguém já deve ter descoberto, certo? Embora a ignorância humana tenha destruído muitos materiais escritos ao longo dos anos, ainda assim temos um vasto material para consulta.

Mas aonde procurar? Filosofia, ciência, religião? De qualquer forma, provavelmente os cientistas refutarão os conceitos da religião e vice-versa, uma vez que ciência e religião não podem ser misturados, e jamais chegaremos a um consenso definitivo ou pontos de convergência, correto?

Será mesmo? Não custa nada verificar.

Podemos fazer uma pesquisa entre os grandes nomes da história da humanidade, pessoas notáveis e diferenciadas em relação ao senso comum de suas épocas. Podemos pesquisar o que essas pessoas pensaram sobre a felicidade. Se houver mesmo uma fórmula para essa complexa questão, ela deve partir de uma mente brilhante, independente da “área de atuação” da pessoa.

Começando pela milenar filosofia oriental: Há mais de 2.500 anos, são atribuídas ao filósofo e pensador Chinês Confúcio as seguintes citações:


“Refeições simples, água para beber, o cotovelo dobrado como travesseiro; aí está a felicidade. As riquezas e a posição sem integridade são como as nuvens que flutuam.” 

“A melhor maneira de ser feliz é contribuir para a felicidade dos outros”

“Muitos procuram a felicidade acima do homem! Outros, mais abaixo. Mas a felicidade é exatamente do tamanho de um homem”.


Um século mais tarde, na Grécia, Sócrates, considerado o homem mais sábio de sua época, pregava basicamente que a felicidade se origina na “virtude”.

No diálogo “Apologia de Sócrates”, de Platão, aparece a seguinte transcrição:


“Sócrates: [Eu os exorto] a não se importar por suas pessoas ou suas propriedades mais que pela perfeição de suas almas [...] pois a virtude não vem da riqueza, mas da virtude vem a riqueza e todas as outras coisas boas para o homem, tanto para o indivíduo quanto para o Estado” (Platão, 1995, 30 a 8- b 4).


Platão complementa o seu “mestre” e defende que o homem só atingirá a felicidade quando abandonar o mundo sensível em direção ao mundo inteligível, que permite chegar à ideia do bem, que é a causa das ideias perfeitas como a beleza, coragem, justiça e felicidade. Platão considera que a felicidade é o resultado final de uma vida dedicada a um conhecimento progressivo que permita atingir a ideia do bem.
Já Aristóteles defende que a felicidade só pode ser alcançada pelo homem quando agir conforme a virtude que o distingue dos demais seres: a razão. No entanto, embora compreenda que a contemplação intelectual seja uma condição necessária para alcançar a felicidade, não é uma condição suficiente. Para o homem atinja a felicidade deve praticar outras virtudes que possibilitem o bem-estar material e social.
Saindo da Grécia e voltando para a China, entre os séculos III e IV A.C. o pensador Chuang-Tzu escreveu o seguinte trecho sobre a felicidade:

“Mas existe um limite próprio para cada uma a partir do qual tudo mais que possa ser desejado apenas levará a lamentações. Quem quer mais do que lhe é dado, sofre inutilmente sem que ninguém o esteja a castigar. Quando nos prendemos demasiado às coisas, sentimos perdas e ganhos; e a alegria e o sofrimento são o resultado de perdas e ganhos. Só quem larga essas pode se sentir verdadeiramente feliz. A única liberdade a que os homens podem aspirar tem que estar inserida dentro dos limites naturais da sua condição humana e da sua natureza. Só devemos tentar fazer o que podemos realmente fazer. A nossa liberdade de ação tem limites.


Quem não gosta do que tem, porque pensa que podia ter melhor, é desagradecido e é estúpido. Abdica da única liberdade que um homem pode ter para optar em vez disso pela ansiedade constante de tentar ter o que nunca vai ter. Quem não gosta do que é, acabará por passar a sua vida frustrado, tentando ser o que nunca vai ser.

Aqueles que aceitam o curso natural das coisas ficam sempre tranquilos quer nas ocasiões alegres quer nas tristes. Quem apenas gosta da felicidade, sofrerá com a tristeza. Quem aceita com tranquilidade a inevitabilidade da morte, sabe tirar melhor proveito da vida. De que serve não a aceitar? Querer ter o que se não pode ter é ficar preso para sempre. Quem apenas gosta da vida, sofrerá com a morte. Quem apenas gosta do poder, sofrerá com a sua perda.”

Mesmo para os filósofos que defendem que a felicidade é baseada no prazer e rejeitam qualquer tipo de transcendência, como Epicuro (também Grego), ainda há ligação da felicidade com a virtude e com o bem. Na clássica Carta a Meneceu Sobre a Felicidade, Epicuro cita:

“Quando então dizemos que o fim último é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos sentidos, como acreditam certas pessoas que ignoram o nosso pensamento, ou não concordam com ele, ou o interpretam erroneamente, mas ao prazer que é ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma. Não são, pois, bebidas nem banquetes contínuos, nem a posse de mulheres e rapazes, nem o sabor dos peixes ou das outras iguarias de uma mesa farta que tornam doce uma vida, mas um exame cuidadoso que investigue as causas de toda escolha e de toda rejeição e que remova as opiniões falsas em virtude das quais uma imensa perturbação toma conta dos espíritos. De todas essas coisas, a prudência é o princípio e o supremo bem, razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria filosofia; é dela que originaram todas as demais virtudes; é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça, e que não existe prudência, beleza e justiça sem felicidade. Porque as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, e a felicidade é inseparável delas.”

E isso tudo foi muito antes do Cristianismo, embora me pareça que há claras semelhanças nessas citações com os ensinamentos de Jesus contidos no Novo Testamento. Jesus sugere uma vida desapegada a qualquer riqueza material e sugere que a felicidade está no bem, na solidariedade e no amor.

“Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” (Mateus 22:21). 


“Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, e segue-me.” (Mateus 19:21).

”Há maior felicidade em dar do que em receber'”. (Atos dos Apóstolos 20:35).

“Ame o seu próximo como a si mesmo” (Marcos 12:31).

E o que dizem outros pensamentos religiosos?
O budismo, por exemplo, nos ensina que existe felicidade ligada às coisas “impermanentes”, mas que essa é finita e, geralmente, rápida. Além disso, essa felicidade, até pela sua própria finitude, pode nos causar sofrimentos equivalentes. No livro “Meditando a Vida”, o ex-professor de física quântica da UFRGS e budista Padma Samten nos passa a seguinte noção de “Felicidade Permanente”, segundo a cultura milenar budista:

“… Mas há um tipo de felicidade que, quando obtida, traz benefícios para a pessoa que a alcançou e para todos os demais, instantaneamente. Mais que isso: essa felicidade é permanente, não tem fim. 


… Trata-se de uma liberação, é algo que não termina.

As qualidades que brotam da liberação não são passíveis de perda. Essa é a felicidade de liberar as seis emoções perturbadoras – orgulho, inveja, desapego/apego, obtusidade mental, carência e raiva/medo. Quando se consegue isso, o mundo muda, passa a ser uma fonte de felicidade radiante, que não depende de fatores externos, nem de objetos. É a felicidade permanente.”

No século I, Epiteto, o respeitado filósofo grego que viveu como escravo em Roma, afirmava que uma vida feliz e uma vida virtuosa são sinônimos. Felicidade e realização pessoal são consequências naturais de atitudes corretas.
Cláudio Galeno de Pérgamo, um importante médico e filósofo romano, também de origem grega, no século II afirmou:

“(…) um homem demasiado apegado [às honrarias, à riqueza e ao poder político] é obrigado a levar a vida mais infeliz possível, pois não tem a mínima ideia do que seja a virtude da alma, aumentando os vícios que há nela e sofrendo incessantemente, porque não é capaz de atingir aquilo que planejou. De fato, os maiores desejos têm um objetivo insaciável, de sorte que, em estado normal, não se pode confiar neles nem naqueles que confiam neles.”

Aproximadamente na mesma época, Marco Aurélio, considerado o último dos “cinco bons imperadores de Roma”, dentre suas diversas anotações, encontramos trechos sobre a felicidade:
“Muito pouco é necessário para uma vida feliz; está tudo dentro de você, em seu modo de pensar”

“A felicidade da sua vida depende da qualidade dos seus pensamentos”

Passam-se mais algumas centenas de anos e chegamos a Avicena, um cientista persa que viveu entre os séculos X e XI, com obras publicadas em diversas áreas, como medicina, filosofia, matemática, teologia islâmica, física, poesia dentre outras. Sobre a felicidade, ele afirmou:
“Você que ignora o que o destino lhe preparou, possa Deus lhe tirar do seu torpor e abrir os seus olhos. Saiba que a riqueza que você junta ficará para os outros, e que somente a felicidade que você proporciona às pessoas pertence verdadeiramente a você. “

“A mais vantajosa das boas ações é a caridade, e o melhor caráter é aquele que suporta todas as aflições sem se queixar. A pior das ações é a hipocrisia. O homem que não se eleva sobre a turba não permanece sem mácula.”

Já no século XV, Leonardo da Vinci ligava a felicidade ao conhecimento, afirmando que “Felizes serão aqueles que prestarem ouvido à palavra dos mortos: leiam as boas obras e as observem."

René Descartes, físico e matemático francês, que revolucionou a filosofia e a ciência no século XVII, autor da célebre sentença “penso, logo existo”, identifica a ética / filosofia como a realização da sabedoria que é suficiente para a felicidade, cuja o mesmo considera como “a melhor existência que um ser humano pode ter esperança de alcançar”.
Segundo Descartes, a ética consiste sobre duas noções básicas: Noção de Virtude, como uma disposição da vontade para escolher de acordo com o juízo da razão sobre o bem; e a Noção de Felicidade, como um estado de bem estar mental que é conseguido através da prática da virtude.
Immanuel Kant, considerado por muitos como o maior filósofo da era moderna, também indicou, na sua concepção, como o homem deveria proceder em relação aos seus semelhantes para obter a felicidade. Kant postulou o que chamou de “imperativo categórico”: a necessidade de agir de modo que a ação possa se tornar o princípio de uma lei válida para qualquer pessoa. Citando algumas de suas sentenças sobre felicidade:

"A moral não nos ensina a sermos felizes, mas como devemos nos tornar dignos da felicidade."

“Não somos ricos pelo que temos, e sim pelo que não precisamos ter.”

“A felicidade não é um ideal da razão mas sim da imaginação.“
E chegamos ao século XX, com o pai da física quântica, Albert Einstein, que também resolveu dar alguns pitacos sobre o tema:
“Uma vida simples e tranquila traz mais alegria que a busca pelo sucesso em uma inquietação constante.” 

"Somente uma vida vivida para os outros é uma vida que vale a pena."

Realizando esse breve exercício, percebe-se que homens notáveis em todas as épocas das quais temos registros, de áreas de conhecimento distintas, nos brindaram com seus conhecimentos e percepções sobre o tema “felicidade” e, ao contrário do que poderíamos imaginar, há incríveis pontos de convergência entre cientistas, religiosos e filósofos.

São muito reincidentes nos registros ligações da felicidade humana com conceitos como virtude, justiça, conhecimento, ética, solidariedade, generosidade, compaixão. Além disso, se percebe convergência muito clara em torno da ideia de que a felicidade real e permanente não está relacionada ao poder, às riquezas e aos bens materiais, tão pouco está diretamente relacionada aos acontecimentos da vida, mas sim com a forma com que cada um de nós encara os mesmos.
Voltando ao início do texto e respondendo à pergunta inicial: É óbvio que não existe uma fórmula matemática pronta sobre como devemos proceder em cada situação para termos uma vida feliz, mas podemos “prestar ouvido à palavra dos mortos”, como disse Da Vinci. Um grande número de pensadores, filósofos, religiosos e cientistas se debruçaram sobre o tema ao longo da história da humanidade, e parece que os caminhos que nos mostraram converge de maneira impressionante para alguns pontos. Basta prestarmos muita atenção para trilhar esse caminho. O conhecimento está disponível.
Terminarei este texto citando dois trechos do livro “Em busca de Sentido”, de Viktor Frankl, um neuropsiquiatra austríaco que ficou por anos preso em campos de concentração nazistas e, após a libertação, fundou a logoterapia, conhecida como a terceira escola vienense de psicoterapia.

“Não procurem o sucesso. Quanto mais o procurarem e o transformarem num alvo, mais vocês vão errar. Porque o sucesso, como a felicidade, não pode ser perseguido; ele deve acontecer, e só tem lugar como efeito colateral de uma dedicação pessoal a uma causa maior que a pessoa, ou como subproduto da rendição pessoal a outro ser.“ 


“Ao declarar que o ser humano é a criatura responsável e precisa realizar o sentido potencial de sua vida, quero salientar que o verdadeiro sentido da vida deve ser descoberto no mundo, e não dentro das pessoa humana ou de sua psique, como se fosse um sistema fechado. Chamei essa característica construtiva de “a autotranscendência da existência humana”. Ela denota o fato de que algo ou alguém diferente de si mesmo – seja um sentido a realizar ou outro ser humano a encontrar. Quanto mais a pessoa esquecer de si mesma – dedicando-se a servir uma causa ou amar outra pessoa - , mais humana será e mais se realizará. …. a autorealização só é possível como um efeito colateral da autotranscendência.”




Muito obrigado pela leitura.


Fontes de consulta:

Livro “Não Somos os Primeiros” - Andrew Tomas